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Lost in Translation: A dor miofascial e sua terminologia

Photo by Romain Vignes on Unsplash

Tempo de leitura: 5min 40seg

 

“Estou com uma contratura no trapézio”.

Quantas vezes já ouvimos essa frase a partir de colegas, pacientes ou de nós mesmos?

Na tentativa de explicar um fenômeno clínico no melhor e mais compreensível formato, recorremos a diferentes termos que não necessariamente possuem um conceito que reflita o que estamos querendo dizer ou mesmo que sejam sinônimos entre si.

Mas afinal, o que é uma “contratura no trapézio”?

A palavra trapézio é a mais fácil de conceituar: refere-se ao músculo. Mas afinal, o que é uma contratura?

Segundo a Enciclopédia Médica do NIH, a contratura desenvolve-se quando tecidos normalmente elásticos são substituídos por tecidos não elásticos [1]. Esse tecido dificulta o alongamento da área e evita o movimento normal [1]. As estruturas envolvidas nas contraturas incluem pele, músculos, tendões, ligamentos e cápsulas ao redor de uma articulação, afetando a amplitude de movimento e a função de determinada parte de corpo [2]. Geralmente, uma contratura é uma complicação comum de muitas doenças neurológicas e/ou musculoesqueléticas, por exemplo: queimaduras, imobilismo e sequelas de doenças neurológicas como o AVC.

A contratura, portanto, ocorre em virtude de uma mudança estrutural e definitiva de um tecido (como o músculo, por exemplo). Quando nos referimos à uma “contratura de trapézio” estamos querendo dizer que existe uma alteração estrutural irreversível desse músculo, ou que há uma disfunção reversível do mesmo?

Outro termo que utilizamos comumente nesse mesmo cenário é “espasmo”. Então se não devo usar o termo contratura, será que posso falar em um “espasmo do trapézio”?

Em Neurologia, o termo espasmo é geralmente utilizado dentro do contexto dos distúrbios de movimento. Assim, os espasmos são “contrações involuntárias de um músculo ou grupo muscular”. Essa contração tônica do músculo pode causar tanto uma alteração de posição articular como uma limitação de movimento. Por exemplo, uma contração muscular espasmódica, tônica e dolorosa é geralmente descrita como uma câimbra. Ao mesmo tempo, um espasmo pode ser protetivo e defensivo, como no caso de quadros dolorosos agudos. Ainda, encontramos espasmos musculares em diversas condições dolorosas que envolvem contrações involuntárias musculares (p.ex. distonias) [3].

E agora? Será que o problema com o qual estamos lidando é uma dor miofascial do músculo trapézio? Podemos usar o termo espasmo para nos referirmos a uma disfunção miofascial de um músculo?

A resposta não é tão simples assim. Mesmo em estudos com o objetivo de formular critérios diagnósticos para a síndrome de dor miofascial, o termo espasmo não é explicitamente conceituado [4].

A dor miofascial é uma condição na qual o músculo e a fáscia apresentam-se com dor em repouso e é um termo descritivo popularizado por Travell e Simons para definir uma dor de origem musculoesquelética crônica ou aguda caracterizada por fenômenos motores, sensoriais e autonômicos que estão associados à presença de pontos gatilho miofasciais [5]. Travell e Rinzler cunharam o termo ponto gatilho miofascial em 1950 ao observar que os nódulos palpáveis podem estar presentes e referir dor para ambos músculo e sua fáscia sobreposta [5].

Phan et al (2019) questionaram a uniformidade e a estabilidade da terminologia aplicada entre as diversas disciplinas que pesquisam e tratam a dor miofascial [6]. Eles revisaram a terminologia de publicações dos últimos 40 anos utilizadas para a definição da síndrome e para a inclusão de participantes em protocolos de estudos. O que se viu foi uma variação significativa e a falta de consenso na terminologia utilizada na literatura sobre dor miofascial [6].

Diversos termos são frequentemente utilizados, como espasmo muscular (muscle spasm), contratura local (local contracture), disfunção de fibras musculares (muscle fiber dysfunction), tensão muscular (muscle tension), ponto sensível (tender point), nódulo sensível (tender nodule), local sensível (tender spot) ou nós musculares (muscle knots). O que não está claro é se esses termos foram usados ​​de forma intercambiável.

Dentro da escola da Acupuntura Médica Ocidental (Western Medical Acupuncture) por exemplo, encontramos que uma banda tensa muscular, que é um termo comumente presente em critérios diagnósticos da síndrome de dor miofascial, é secundária à uma “contração sustentada de meio da fibra” muscular e não à uma contratura ou a um espasmo muscular [7].

Essa heterogeneidade observada na terminologia é um achado importante, pois impede comparações entre estudos, uma vez que diferentes grupos de termos podem representar manifestações variadas do mesma condição clínica subjacente. E mesmo os critérios de Travell e Simons não têm sido utilizados de forma uniforme [6].

A padronização da terminologia permitirá a tradução eficiente e confiável de resultados entre disciplinas para informar futuros estudos clínicos e ajudar a identificar fatores que contribuem para os mecanismos envolvidos na síndrome de dor miofascial.

Provavelmente estamos mais perto de encontrar uma uniformidade, tendo em vista o aumento significativo de estudos na área nos últimos 10 anos [5], mas é importante que isso evolua a ponto de encontrarmos uma nomenclatura comum para que falemos a mesma língua.

 

[1] https://medlineplus.gov/ency/article/003185.htm

[2] Prabhu RK, Swaminathan N, Harvey LA. Passive movements for the treatment and prevention of contractures. Cochrane Database Syst Rev, 2013 Dec 28;(12):CD009331.

[3] Campbell WW. DeJong’s the neurologic examination. 6th Ed. Philadelphia: Lippincot Willians & Wilkins; 2005.

[4] Rivers WE, Garrigues D, Graciosa J, Harden RN. Signs and Symptoms of Myofascial Pain: AnInternational Survey of Pain ManagementProviders and Proposed Preliminary Set of Diagnostic Criteria. Pain Medicine 2015; 16: 1794–1805

[5] Shah JP, Thaker N, Heimur J, Aredo JV, Sikdar S, Gerber L. Myofascial trigger points then and now: a historical and scientific perspective. PM R. 2015;7(7):746-761.

[6] Phan V, Shah J, Tandon H, et al. Myofascial Pain Syndrome: A Narrative Review Identifying Inconsistencies in Nomenclature. PM R. 2019 Nov 17. doi: 10.1002/pmrj.12290. [Epub ahead of print]

[7] Filshie J, White A, Cummings M. Medical Acupuncture – A Western Scientific Approach. 2nd Ed. Elsevier; 2016.

 

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